segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Brincar e trabalhar: Jogo e trabalho


por Heloysa Dantas

Brincar e jogar: dois termos distintos em português e fundidos nas línguas de cuja cultura somos devedores: o francês (jouer) e o inglês (play). Por causa disto, frequentemente desperdiçamos a diferenciação de ordem psicogenética que a nossa língua nos permite: brincar é anterior a jogar, conduta social que supõe regras. Brincar é forma mais livre e individual, que designa as formas mais primitivas de exercício funcional.

O termo “lúdico” abrange os dois: a atividade individual e livre e a coletiva e regrada. O que chama a atenção, quando pedimos a profissionais de educação infantil sinônimos para ele, é a tendência a oferecer “prazeroso” e nunca “livre”. “Ludicamente” é visto como prazerosamente, alegremente, e não “livremente”. Isto, que considero uma distorção de conseqüências infelizes, consiste em perceber o efeito e não a causa: o prazer é o resultado do caráter livre, gratuito, e pode associar-se a qualquer atividade; inversamente, a imposição pode retirar o prazer também a qualquer uma. Parece impossível definir substancialmente o que é brincar: a natureza do compromisso com que é realizada transforma-a sutilmente me trabalho.

Resulta daí um paradoxo que pode levar os próprios defensores da pedagogia do brinquedo a traírem seus próprios fins, quando o adulto se julga autorizado a impor atividades, por ele consideradas prazerosas. Os “convites” para participar de uma “brincadeira” são frequentemente mente convocações que não prevêem a recusa.

Parece pois necessário ao pensar a educação pelo jogo, refletir simultaneamente sobre a educação pelo trabalho, enfrentando o preconceito que entre nós, por graves razões sociais, separa as idéias de infância de trabalho.

Os fantasmas da exploração infantil e da conseqüente perda direito à educação escolar nos tem levado a deixar de lado as belas concepções de educadores como Freinet, Dewey, Makarenko, para os quais o trabalho, dentro do ambiente escolar, pode constituir-se em poderoso instrumento educativo.

Este esquecimento tem um efeito perverso: obrigada a absorver toda a tarefa da educação infantil, a pedagogia do jogo se vê ameaçada de perder o que tem de essencial, ameaçada por práticas utilitaristas e autoritárias. A oferta do prazer parece construir nova justificativa para a imposição adulta, caracterizando a nova face, insidiosa e disfarçada do autoritarismo.

É claro que substituir “prazer” por “liberdade” não facilita em nada a tarefa de definir o lúdico. Nos dicionários filosóficos, liberdade confina com “onipotência”, por uma lado, e com “consciência”, racionalidade, por outro, tornando inviável qualquer tentativa de entender a noção em sentido absoluto. Se modestamente nos contentarmos em emprega-la com o sentido de alguma possibilidade de escolha, teremos que nos referir a graus de liberdade que começam com a possibilidade de recusar o convite adulto, e se ampliam na medida em que se multiplicam as alternativas de atividade. Em sala vazia, uma criança pode exercer atividade livre; sua liberdade cresce na medida em que lhe são oferecidas possibilidades e ação, isto é, opções. Neste sentido, a liberdade da criança não implica na demissão do adulto: pelo contrário, expandi-la implica no aumento das ofertas adequadas às suas competências em cada momento do desenvolvimento. Povoar o espaço com jogos viáveis, passiveis de utilização autônoma, requer um alto grau de conhecimento psicogenético.

Não estou afirmando que nenhuma atividade deve ser imposta: o equilíbrio entre o livre e o imposto precisa ser encontrado. Apenas digo que a atividade imposta é trabalho, o que resulta simultaneamente em duas exigências: a de não descaracterizar, poluir mesmo, o clicam lúdico com insinceridade e a coação, e a de enfrentar a necessidade de incluir desde o início, a atividade instrumental e produtiva, ao lado da atividade lúdica, na educação. A dialética do jogo-trabalho é indispensável à saúde de ambas as práticas: pode resgatar a liberdade do jogo e o prazer do trabalho. Como sempre, as próprias crianças sinalizam isto ao adulto sensível: não é rara a experiência de, ao fabricar, com elas, o material para a realização de um jogo, vê-las mais interessadas na produção do que na sua utilização posterior.

Entre a atividade lúdica e a atividade produtiva parece haver continuidade. Examina-las em movimento evolutivo, é, pois, interessante. O recurso à psicogênese é um grande auxílio na compreensão dos fenômenos psíquicos: examinar sua origem e evolução esclarece também seu destino.

* extraído do livro Brincar e suas teorias, organizado por Tizuko Morchida Kishimoto, da Piorneira - Thomson Learning.
**ilustração de Vânia Medeiros.

Nenhum comentário: